|Quase cinema|

    

     Ah, os misteriosos caminhos percorridos por nossos sentimentos! Há uma lei universal que postula que as emoções só vingarão caso haja alguma forma de impedimento? Ou será nossa necessidade de sangrar para comprovar que vivemos que dita tais sandices?

     Orgulhava-se tanto de sua recém adquirida liberdade, obtida após muito sofrer. Poderia voar sem rumo pelo azul brilhante do céu repleto de chumaços de nuvens e perder-se sem medo; conhecia o caminho para casa de olhos fechados.

     Sentia apenas um vago vazio em seu peito, vazio este causado pela perda recente, porém tal hiato não lhe impedia de voar: Seu mundo estava em franca reconstrução e  cada novo tijolo ou estrutura colocada era uma excitante mudança de perspectiva prestes a acontecer. Até que seus olhos se cruzaram novamente.

     Estranha inquietude perante a familiaridade daquelas singelas permutas de conceitos e impressões. Reencontrara um pedaço de seu próprio ser faltante e assustou-se ao perceber o prazer que isso lhe causara. Era quase um ser inteiro novamente, embora eternamente incompleto; sua consciência e inspiração retornavam a todo vapor, inundando o corpo com uma fluidez de sentido assustadoramente balsâmica.

     A doce perturbação corria em suaves ondas que alumiavam os cantos outrora obliterados de sua mente. Fingia não saber do que se tratava: Era por demais perigoso ousar nomear o que sentia e tentar avaliar sua consistência.

     Uma nota cítrica temperava agora sua liberdade, preenchendo-a com as mais variadas tessituras. Aquele era seu segredo mais bem guardado, pois embora ambas as partes soubessem a inefabilidade de seus destinos, e tivessem vaga consciência do que viria, ele seria guardado e esquecido até que não houvesse mais volta. E o tempo sofreria um teste para comprovar se ele os auxiliaria ou os impediria de presenciar a chegada de um futuro apenas adivinhado.