São Paulo, dia 12 de setembro de 2015.
Queridos amigos,
Há algum tempo que queria escrever essa carta, pois sinto
que preciso dividir algo muito pessoal com todos vocês, mas não conseguia
verbalizar de jeito nenhum. Sei que alguns devem estranhar meu jeito meio arredio
e introvertido de manter contato e essa é uma das razões pelas quais eu senti
necessidade de compartilhar isso com vocês. Outra razão, mais importante, é
porque eu gosto demais de vocês e creio que seja justo dividir algo tão
complicado e importante sobre a minha vida com quem eu quero bem.
Ok, eu dei toda essa volta, mas não revelei nada, né? É que
ainda hoje é muito difícil falar a respeito, mesmo sendo por escrito.
Respirarei fundo e direi logo de uma vez: tenho uma fobia. Ela é muito
específica e tão forte que nem consigo dizer ou escrever o que a causa. A própria
palavra me causa reação. Há um nome científico, contudo, que eu consigo dizer e
escrever sem problemas: tenho Emetofobia. Cliquem sobre essa palavra e vocês
irão para um link que explica de forma bem simplória o que é. Essa é a minha
forma de conseguir expressar o que é, pois até no Google a pesquisa traz coisas que não posso ler e ver sem me sentir mal. Por favor, leiam. Assim que terminarem de
ler – e os mais curiosos talvez procurem outras fontes sobre o assunto, para
compreender melhor –, por favor, retornem a essa carta.
Agora que vocês já sabem, imagino que tenham muitas dúvidas
e perguntas sobre o assunto. Minha própria condição me impede de sanar todas –
e é por essa razão que eu os direcionei para um link que falaria o que eu não
consigo dizer – mas há algumas que serão recorrentes e que posso responder sem
maiores danos. Assim que minhas mãos pararem de tremer sobre o teclado.
“Há quanto tempo você tem isso/sabe disso?”
Tenho esse medo irracional desde os 5 ou 6 anos.
Praticamente desde que me entendo por gente eu me apavorava e gritava e tinha
reações ansiosas fortíssimas toda vez que algo do tipo acontecia comigo, com
alguém da minha família ou quando eu só ouvia falar a respeito. Não consigo
falar ou ouvir ou ler ou escrever a palavra com v desde essa época. Entretanto,
passei anos e anos sem saber que se tratava de uma fobia e que isso tinha nome.
Descobri da forma mais estranha possível: em 2011 ou 2012 saiu uma matéria no
site do Yahoo sobre as 10 fobias mais bizarras. Nessa matéria tinha Emetofobia
e a explicação do que era. Lembro que fiquei tonta de tanta surpresa e alívio.
Por causa dessa matéria eu descobri que o que eu tinha era “real” e
cientificamente comprovável. Por causa dessa matéria eu entendi que havia
outras pessoas por aí que provavelmente sofriam o mesmo que eu. Não estava
sozinha. Não era frescura ou exagero, como ouvira minha vida toda. Era real.
Era doloroso. Podia ser tratado. Faz 21 anos que convivo com essa fobia. Todas
as horas do dia. Todos os dias da semana. O tempo todo.
“Mas você sabe o que te causou essa fobia, certo?”
Não, não sei. Tenho algo que chamo de “banco de memórias do mal”
em que guardo tudo que é memória, imagem ou acontecimento relacionado à fobia –
e esse banco me atormenta com uma frequência absurda, às vezes até com criações
próprias, como um perpétuo filme de terror–, mas não sei qual foi a situação
primordial que me causou esse medo irracional da “coisa”. Até tenho algumas
teorias, mas nenhuma ajuda muito.
“Você faz acompanhamento psicológico para tratar disso?”
Sim, faço. Tem quase três anos que estou em terapia, mas a
coisa caminha a passos lentos. Se existem níveis de fobia, a minha deve estar
no nível mais elevado. Falar a respeito é difícil, pensar a respeito é ainda
pior – embora, de certa forma, eu pense o tempo todo a respeito e isso é uma
espécie de assombração – e sempre tenho crises ansiosas medonhas. Fobias, em
tese, não tem cura, mas o tratamento ajuda e fortalece. Considero uma vitória
conseguir escrever a respeito, então estou caminhando.
“Mas, no que isso altera sua vida?”
Pra começar, a fobia me impede de fazer uma quantidade
absurda de coisas e a evitar outra quantidade igualmente absurda. De coisas
grandes a coisas banais. É um transtorno paralisante. Como a Emetofobia é aparentada a transtornos de
ansiedade e TOC, há uma infinidade de pequenas atitudes e rituais que fui
criando ao longo dos anos para me proteger e que nem me dei conta ainda. Há
coisas que nem são diretamente ligadas a fobia, mas que, por algum motivo,
fazem conexão com ela na minha cabeça. Listarei tudo que eu lembrar, mas sei
que não será nem metade:
- Não consigo falar, ouvir, ler ou escrever a palavra com v
(e seus vários sinônimos) sem começar a tremer ou a me sentir mal e ansiosa.
Isso também vale pro uso metafórico e medonho que essa palavra tem sido usada
nos últimos tempos;
- Evito comer fora de casa o máximo que eu puder;
- Não como em qualquer lugar, nem qualquer tipo de alimento
(a intolerância à lactose só reforçou isso);
- Não bebo água de procedência desconhecida;
- Não bebo álcool (a não ser em pequenas quantidades);
- Não frequento locais em que haverá álcool;
- Não frequento locais cheios de gente;
- Não gosto de estar num grupo de desconhecidos;
- Não vou a baladas sob hipótese alguma;
- Fico extremamente ansiosa em locais fechados e/ou
abafados;
- Não vou mais ao litoral (porque muitas lembranças
relacionadas à fobia ocorreram lá);
- Coisas relacionadas a navios, viagens marítimas, maremotos
e afins me causam um desconforto absurdo;
- Odeio o verão ou temperaturas muito quentes;
- Detesto viajar de carro;
- Viajar sempre me causa uma ansiedade fora do comum;
- Tenho ojeriza a hospitais;
- Fujo de gente doente;
- Qualquer assunto relacionado a área da saúde, a doenças, as
partes internas do corpo humano ou a área de segurança alimentar me causam um
ataque de ansiedade;
- Não consigo fazer serviços relacionados à limpeza de
banheiros e afins;
- Tenho alta sensibilidade a odores ruins e/ou fortes;
- Tenho aversão a bebês e crianças pequenas;
- Conversas sobre gravidez e afins me causam angústia;
- Ruídos guturais e tosses carregadas me dão sobressaltos;
- Nunca fui nem nunca pretendo ir a parques de diversões no
estilo Hopi Hari;
- Odeio brinquedos radicais, coisas que giram ou viram de
ponta-cabeça;
- Não vou mais ao cinema ou assisto a filmes inéditos, pois
a maioria deles têm alguma cena com o que me dá fobia ou faz menção à “coisa”;
- Dificilmente vejo televisão ou assisto séries pelo mesmo
motivo (gente, até desenho animado tem essas nojices agora!);
- Não consigo andar na rua ou usar transporte público sem
usar fones de ouvido, porque a quantidade de vezes que pessoas desconhecidas
usam o acontecimento com v como tópico de conversa com as outras é absurdo;
- Não consigo falar sobre a minha fobia com ninguém;
- Num aspecto geral, ir a lugares diferentes ou ter que
conviver em grupos me gera ansiedade.
Ahh, um detalhe
extremamente importante: fico infinitamente mais sensível se acabei de comer.
Em resumo, minha fobia atrapalha um bocado minha vida. Ela gera uma carga absurda de insegurança e ansiedade. Ela atrapalha minha forma de me relacionar com o mundo, com as pessoas e comigo mesma. Como disse, já faz 21 anos que convivo com ela, então há mais aspectos em que ela provavelmente atrapalha, mas que nem sou capaz de notar.
“Por que você nunca me contou?”
Porque nunca ninguém me entendeu. Antes de saber que havia
um nome científico pra isso, todos à minha volta encaravam como frescura ou
exagero meu. Cheguei a sofrer um bullying fodido na escola por essa razão: eu
tinha seis anos e meus coleguinhas me mostravam a boca com comida mastigada,
falavam que estavam se sentindo mal e imitavam o barulho da “coisa” para me
fazer gritar e sentir mal. Até a professora fez um discurso maravilhoso sobre
como isso era normal e eu tinha de aprender a lidar. Preciso dizer que não
ajudou em nada e só agravou o bullying dos coleguinhas? Passei longos anos da
minha vida encarando a fobia como meu pior defeito. Achei de verdade que
ninguém seria capaz de me amar e de me querer bem se viesse a saber. Pra mim, o
mundo sempre seria hostil. Com isso aprendi a esconder. A não contar pra
ninguém. A não revelar meu maior medo e correr o risco disso virar motivo de
provocação. Não é engraçado. Me faz mal. Me faz mal de verdade. Até hoje não sei
como contar, por isso escrevi essa carta quilométrica. Porque queria que vocês
soubessem. Porque queria deixar claro os porquês da minha introversão. Porque
quero mostrar que essa fobia é real e que ela causa muito transtorno pra quem a
tem. Porque desejo que ela seja mais estudada pra, quem sabe um dia, ela ser
apenas um capítulo triste e passado na minha história.
Obrigada por ter lido até aqui.
Beijos!
C.A.